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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Romeu e Julieta

Aqui está uma shortstory ou crónica ou seja o que for xD Normalmente eu dividiria em duas para o post não ficar tão pesado mas como só tenho internet em casa para o ano aproveitei esta escapadela no pc do escritório da minha mãe para o pôr todo. É uma história bastante dramática e lamechas ...mas pronto, tive a ideia e tinha mesmo de a escrever. Espero que gostem...ou não...como quiserem xD
Feliz Ano Novo!

“When you are dreaming with a broken heart the waking up is the hardest part”
Dreaming with a Broken Heart, John Mayer 

O sol esbatia-se fortemente nos nosso olhos naquele fim de tarde de Domingo e, apesar da sua luz morna quase fresca, a brisa quente que corria afagava confortavelmente os meus braços desnudos. Estavamos sentados num campo de searas ondulantes ao vento, eu entre os seus braços enormes e fortes, a casa de campo lá ao fundo entre as oliveiras fartas. Ouviam-se vários pássaros ao longe numa música de fundo relaxante e partículas de pó, expostas pelo sol, dançavam lentamente no ar. Estiquei o braço e cerrei os dedos na esperança vã de as agarrar. Ele riu-se do meu gesto infantil. Tudo parecia perfeito, tão perfeito que se assemelhava a uma cena minociosamente elaborada para um filme romântico.
Tinhamos passado a tarde no rio, brincando na àgua numa exortação à nostalgia de infância, contemplando os nossos braços a deslizarem graciosamente pelos lençóis inconstantes, chapinhando entre risos, cócegas e segredos. E agora ali estavamos, fechando os olhos ao toque do crepúsculo, com a marca molhada do fato de banho a gelar-nos a pele e sorrindo por nada.
-Temos de ir, é quase noite.-lembrou ele.
Fechei os olhos numa dor insuportável, não queria voltar à realidade, a perfeição era demasiado tentadora e viciante para a deixar partir ou para eu própria me deixar partir.
-Tens mesmo de ser?- implorei cerrando as sobrancelhas mostrando o meu profundo desagrado.
Não foi preciso uma resposta.
Já anoitecera. A viagem foi tão deliciosa quanto o resto do dia tinha sido, riamos enquanto eu brincava com os nós marcantes dos seus compridos dedos e ele mudava de música em música até encontrar uma que me fizesse encostar a cabeça no seu ombro sorrindo.
- Tenho uma coisa muito a importante a dizer-te...- disse eu com uma expressão dura.
-Estás grávida?- riu-se.
-Não!- respondi batendo-lhe no braço numa gargalhada.
-Então?
-Tenho fome.- ri.
- Paramos na próxima estação de serviço esfomeada- gracejou piscando-me o olho.
O ar arrefecera mas nada que um fino casaco de malha não aguentasse. Ele pôs o braço à minha volta e olhou desconfiado para um grupo de jovens que aceleravam num carro vermelho no canto oposto do parque de estacionamento e riam preversamente como se tivessem acabado de roubar um doce a um bebé. “Crianças”, consegui ler-lhe nos olhos.
O café da estação era comprido e um pouco deprimente, fazia lembrar aquelas lanchonetes americanas onde as empregadas distribuem café a cada cinco minutos nos seus sapatos de enfermeira. Era recatado e estava vazio com excepção de um camionista de meia idade que vertia ruidosamente um líquido indecivrável de uma enorme caneca ao mesmo tempo que passava atentamente os olhos pelo jornal e a outra mão na barba seca e aspera.  Sentamo-nos ao balcão e rapidamente uma sorridente empregada veio ao nosso encontro.
-Que posso trazer-vos?- disse numa amabilidade treinada.
- Para mim pode ser só uma cola e para a menina uma meia de leite e torrada?...- olhou-me perguntanto se estava certo.
Sorri em tom de afirmação. A comida era fraca, o meu estomâgo já implorava por algo mais caseiro e o desconforto tornara-me mal disposta e rezingona como uma menina mimada. Ele, pelo contrário, parecia inabalável a tudo o que rodeava e a tudo o que o poderia vir a rodear, elegante e lindo como sempre tal e qual um ser indiferente à simplicidade humana. A fome não o deixava menos doce e atencioso, o frio e a roupa molhada não o deixavam menos resplandescente o meu mau humor não me impedia de o continuar a amar incondicionalmente. Ele era perfeito no verdadeiro sentido da palavra, e havia ainda toda uma perspectiva futura de uma vida a dois com ele.
Apenas à saída reparamos na chuva furtiva que atacava o chão e a quem se atrevesse a se atravessar no seu caminho.
-A sério? Chuva? No Verão? Por amor de Deus!- reclamei revirando os olhos.
- Espera aqui, eu vou buscar o carro, assim não te molhas.- deu-me um beijo na testa e saiu a correr.
- A sério? És assim tão perfeito?- continuei lamuriando no mesmo tom irónico como se estivesse chateada com ele.
Ainda o consegui ouvir rir quando numa guinada de pneus chiantes o carro vermelho atravessou o meu olhar em direcção a ele. Tudo aconteceu muito lentamente como se, mais uma vez, tudo de um filme se tratasse, a rotação do seu corpo ao ouvir o barulho fazendo o cabelo molhado dançar para o lado contrário, o carro a cortar a chuva na horizontal, o embate doloroso que o empurrou para cima para em seguida cair num baque gelado no alcatrão duro...ouvi alguém gritar frenéticamente na minha cabeça, tenho agora noção que tinha sido eu. Corri tão rápido como nunca havia corrido em direcção ao seu corpo inerte. A empregada juntamente com o camionista acudiram assim que me ouviram mas já não havia nada a fazer, já não havia vida naquele rosto perfeitamente esculpido, havia apenas sangue em todo o lado que me marcou o olhar como uma mancha vermelha desfocada de desamparo e de uma dor aniquilante que me consome desde então.
Chorei e chorei, chorei naquele momento esperando inocentemente que a minha prece desesperada o trouxesse de volta, chorei quando alguém me agarrou pela cinta enquanto eu lutava para me libertar em direcção à ambulância que partia do local, chorei e chorei, mas não me restam mais lágrimas agora, na verdade, não me resta nenhuma expressão. Estou sentada no sofá da casa da mãe dele depois da cerimónia mais torturante da minha vida, estou de preto, toda a gente está de preto, o mundo está de preto e eu estou nada mais, nada menos, que sozinha e incompreendida. Os familiares e amigos lamentam-se relembrando o quão especial ele era, o quanto é necessário mais pessoas como ele neste Mundo e eu só consigo sentir uma raiva latente por todos eles, uma vontade de os esmurrar por não saberem do que falam. Eu sabia que a verdadeira razão da minha raiva estava na injustiça de tudo isto. Porque não posso ter direito ao meu final feliz? Porquê castigar-me por algo  que não fiz tirando-me o que era mais importante para mim? Não era certo magoar os outros com o meu sofrimento mas neste momento nao me preocupava estar errada apenas me importava em acabar com esta sensação de “não existência”, esta sensação de que nada nunca ficaria bem, esta sensação de uma ferida impossível de sarar.
E, enquanto corria irrompendo pela porta principal deixando expressões atónitas para trás, só consegui pensar que nunca mais haveria outro igual ele, nunca mais, nunca mais o teria ali para me fazer rir quando estou zangada com o Mundo, nunca mais ninguém me diria que fico linda quando choro, nunca mais ninguém enroscaria as suas pernas nas minhas no frio do Inverno, nunca mais ninguém me faria sentir em casa em qualquer parte do globo ou me apertaria o nariz naquele jeitinho tão ridículo, nunca mais, pelo menos na maneira que ele o fazia. Subi as escadas de emergência até o telhado do prédio onde costumavamos fazer bolinhas de sabão só por diversão. O pôr-de-sol estava lindo nesse dia e no momento em que fechei os olhos consegui sentir por uma última vez o seu perfume quente, a sua mão suave a passar na minha face, “tens umas bocheichas tão fofinhas” diria ele.
Avancei até a beira do telhado com o meu coração vazio nas mãos sem medo de o deixar perder-se no pavimento lá em baixo. Pela primeira vez naqueles dois dias a seguir ao acidente, senti-me calma, sem medo do que viria a seguir pois nada viria a seguir, só a eternidade oca do desconhecido. Quando senti o vento lutar contra mim ao cair ainda pensei, talvez a nossa história seja contada como a de Romeu e Julieta foi contada.


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